De 3 de setembro
de 2011 a 2 de setembro de 2012, nosso pai teria 100 anos. Na semana final
desse período em que se comemora o seu centenário de nascimento, Arizla
deu a ideia de uma edição especial em homenagem a ele.
Eu pretendia colocar aqui uma foto só do papai, mas todas as fotos em que ele apresenta muita felicidade são aquelas em que ele está junto com a mamãe. Acho que nem mesmo a morte teve poder para separá-los.
GARIBALDI CELESTINO FRAGA
MEU PAI
ARIZLA FRAGA DE SOUZA
Alguns
nomes e ocasiões me vêm à lembrança quando penso em meu pai.
Quando morávamos na Rua Vitor Meireles
(no Riachuelo), ele organizava uma apresentação na sala de jantar. Uma vez, o Ado se apresentou coberto com um
lençol como se fosse um fantasma. Lembro
que papai, para dar mais emoção à cena, anunciou: “- Olha o fantasma!” e o Ado
saiu correndo assustado com ele mesmo. Quando eu era pequena, ele parou de
fumar e, para ajudar nisso, tinha sempre no bolso do paletó uma caixa de
chicletes. Eu sempre mexia nos bolsos à
procura dos chicletes. Era chamado de Tchelé (de Celestino) pelos
irmãos. Além dele, tinha o Ticandó (Tio
Antônio), o Tio João, a Tia Mia e a Tia Elvira (todos filhos da vovó Tereza, a
quem também conheci). Ainda na Rua Vitor Meireles (tarde da
noite), voltávamos da Fraternidade andando e conversando no meio da rua, junto
com Seu Emiliano e a Dona Celina, além de Seu Preard e Dona Lurdes que eram
nossos vizinhos.Participamos,
na década de 40, de um acampamento em Araras, organizado pela Associação Cristã
de Moços (ACM). Fomos papai, eu, Zico e
Santa (filha de tio Oscar e tia Dulce).
Era Carnaval e nos divertimos muito.Dormíamos
em barracas; homens em umas e mulheres em outras. Quando atrasávamos na hora
das refeições, tínhamos que correr em volta das mesas enquanto todos batiam com
os talheres na mesa. Participamos de várias competições; lembro que o Zico
ganhou uma competição de tiro ao alvo.
Foi muito bom!Papai
nos levava, nessa época, para ver o Carnaval na Avenida Rio Branco. Íamos no
carro do Chico e levávamos confete e lança-perfume. Chegamos a ver o Cacique de Ramos passar (Na
época, era um bloco grande, mas pequeno se comparado com o bloco de hoje) Mudamos para perto da Fraternidade
primeiramente para a Estrada Velha da Tijuca e, depois, para a Rua Muçu, onde
construiu a casa onde fomos morar ( projeto do arquiteto Benjamim de Carvalho). Papai parecia o chefe de uma tribo
quando saía com todos os filhos. Para
atravessar a rua, ficávamos, lado a lado, na calçada. Ele no meio de nós, com os braços abertos,
atento, ordenava à tribo: “VAMOS!!!” Bem
teatral... Na Fraternidade, papai se destacava
pela inteligência e pelo poder de prender a atenção de todos ao falar sobre a
doutrina, lá na frente. Era
verdadeiramente brilhante!!!Papai
costumava ir frequentemente a Brasília, de avião. Acho que era para entrar com
recurso, em causas já julgadas no Rio. Demorava de 2 a 4 dias para voltar. Uma vez,
levou o Ricardo com ele (acho que foi para Belo Horizonte). Lembro-me de seus ternos brancos de
linho (impecáveis) que usava para ir à Fraternidade. Saía tão bonito e cheiroso que a vovó ficava
desconfiada. “Isso tudo é só para
rezar?”, sussurrava. Era vegetariano e sentava-se à mesa
para almoçar com alegria. “Eu adoro
bertalha”, dizia como se fosse uma iguaria dos deuses. Sempre esquecia o guarda-chuva no
ônibus para o trabalho. Ficava fácil
comprar presente para ele: era sempre um guarda-chuva novo. Seus espirros eram escandalosos (era
alérgico...) ecoavam pela casa toda!
Aprendeu a dirigir já adulto. Não era bom na direção. Mamãe não tinha confiança nele como motorista
e contava que, dirigindo com o vidro do motorista fechado, tentava virar à
esquerda colocando a mão pra fora da janela.Em
1951, participamos (papai, eu e um grupo da Fraternidade) de uma “Cruzada” para
divulgar a Doutrina Rosacruz. Fomos de
navio (levando os carros) até Porto Alegre e voltamos de carro fazendo
palestras em várias cidades. Todos os filhos torcem pelo
Fluminense, já que papai era tricolor (inspirado nas cores da bandeira
italiana). Em casa, não mandava em quase nada.
Tudo era mamãe que resolvia: escola, criança doente, organização da
casa, etc. Aos domingos pela manhã, tirava os
livros da estante e os colocava na varanda para arejar. Enquanto fazíamos isso, escutávamos músicas
italianas cantadas, entre outros, por Benjamino Gigli, Enrico Caruso e Mario
Lanza. As que me deixaram lembranças
foram: O sole mio, Una furtiva lagrima, Torna a surriento, La donna è mobile,
Tosca, Funiculì funicolà, Vesti la giubba, Ti voglio tanto bene, Volare e Ridi
pagliaccio. Quando entrava mais dinheiro, era um
mão aberta; mas quando a situação apertava, perguntava à mamãe: “Mas eu não
trouxe dinheiro outro dia mesmo?”. Papai me ajudou a comprar um
apartamento no prédio em que moro. Papai
pagava ½ prestação, eu (já trabalhando) pagava ¼ e Adolpho (trabalhando e
fazendo faculdade) pagava ¼. Depois
compramos outro no mesmo prédio. Um
apartamento ficou para nós e outro para o papai. Depois trocamos o nosso pela
cobertura. Ele nos ajudou bastante
agindo assim. A firma que estava construindo o prédio faliu . Papai formou uma
comissão de moradores para terminar a obra; era o chefe dessa comissão e chamou
o Dr. Carvalho para cuidar da parte técnica. Graças a ele, 68 famílias
conseguiram terminar seus apartamentos. Quando fomos para São Paulo, em lua-de-mel,
e papai nos levou até o embarque no trem noturno, recomendou cuidado comigo ao
Adolpho. Estava preocupado, pois era a
primeira filha que casava. Seus interesses eram o bem estar da
família, o trabalho e os assuntos esotéricos.
Procurava, depois que saiu da Fraternidade, conhecimentos em outras
filosofias. Chegou a frequentar a Igreja
Messiânica e fazia yoga com o Professor Hermógenes. Não sei se desenvolveu
algum poder de cura, mas mamãe dizia que ao tocar a testa dela, com as suas
mãos, a dor de cabeça sumia. Brincando,
talvez, dizia que ele aplicava Johrei.
Estava no primeiro ano ginasial e encontrei, no final da aula, uma caneta
esquecida sobre a mesa da professora. Peguei e levei para casa. Papai viu que
tinha um nome gravado na caneta. Só lembro do sobrenome Amado. Era a mulher
(como advogado, papai dizia que era essa a palavra certa em vez de
esposa) de Gilson Amado, diretor ou professor no Colégio Pedro ll
(família muito respeitada no meio intelectual) Através do catálogo
telefônico, papai entrou em contacto com a professora e a caneta foi devolvida.
Não brigou comigo, apenas fez o certo. Essa foi a melhor lição na minha vida: a
formação do caráter. Lembro-me de algumas vezes em que
reclamou:·
A bronca que levei quando, toda exibida, desci a
escada da sala usando um maiô igual ao da Marta Rocha (Miss Brasil), e o maiô
tinha até sainha na frente;
·
A indignação ao chegar a casa e ver a Rosa
namorando o Marcus na varanda, “... e era ela que estava agarrando!”;
·
Quando o Zico trabalhava no escritório com ele e
se atrasava em chegar, ligava pra casa e perguntava à mamãe: “Cadê o seu
filho?” Desculpa, nessas ocasiões o Zico era o “filho da mãe”. Não se preocupe, nas outras era motivo de
muito orgulho, era o “meu filho”.
Ganhou dois presentes em datas muito
especiais: a primeira neta (Mônica) que nasceu na véspera do seu aniversário e
o primeiro neto (Adolpho) nascido no dia do aniversário de casamento (24 de
fevereiro). Por algumas pessoas tinha um carinho
especial:
- Tio Oscar.
Era como um irmão para ele.
Tio Oscar era lacerdista e papai era getulista (costumava ir à
Bauru defender o Sindicato dos Ferroviários). As divergências (pacíficas) eram
frequentes. Com Tio Oscar e Tia
Dulce, nossos pais foram, de navio, até Manaus. Adoraram!
- Seu Diamantino e Seu Diniz: eram irmãos e
frequentavam a Fraternidade. Costumavam almoçar, muitas vezes, lá em casa.
- Dr Pedro: era seu sócio e vizinho na Rua
Muçu.
- O primo Chico: dono de uma sapataria onde nos
levava, ainda pequenos, para escolher sapatos (acho que em troca de
serviços de advocacia).
- Augusto: amigo feito na Associação Cristã de
moços (onde andou fazendo ginástica).
Algum tempo antes de morrer, papai
perdia sangue pelo nariz e, embora hoje seja aviso de pressão alta, não se dava
nenhuma importância a isso. Também Dr Waldir, que na época era seu
sócio, falava que papai vivia “dando chute na canela dos outros”. Andava intolerante, e isso não era normal. No dia em que morreu (meu aniversário)
fomos todos almoçar na casa. Depois do
almoço, os genros (todos vascaínos) foram ao Maracanã assistir Flamengo X
Vasco. Mamãe me ligou à noitinha, e pediu que
chamasse uma ambulância. Fiz isso,
peguei o carro e fui para lá. Encontrei
papai caído no chão do escritório, desacordado e se debatendo. Mamãe e Dr Pedro estavam ao seu lado. Quando parou de se debater, Dr Pedro disse
para nós: “- Agora está tudo bem” e eu sabia que não estava.Morreu
em 13 de junho de 1976, aos 64 anos, em consequência de um AVC, pois colocou a
mão na testa sinalizando dor forte. No seu enterro havia muitas
pessoas. Lembro que até Miro Teixeira
(que já era vereador ou deputado) estava lá.
Era amigo do Tio Antônio (que também era MDB).Ricardo
estava inconsolável (chorando muito).
Cheguei perto dele e falei que papai preferiria que nós nos
mantivéssemos calmos. E assim ele ficou. Lembro-me da tristeza de ver mamãe
sentada, sozinha, na varanda. Lá ficavam
os dois sentados sempre conversando. E,
ao escrever isso, meus olhos estão cheios de lágrimas (pela terceira vez). Era um amor lindo que começou quando
ele, fazendo Faculdade de Direito, ajudava o pai sapateiro. Só se formou depois de casado. Após 40 anos de casados nunca os vi
brigando ou discutindo, nem ao menos ouvi uma palavra mais ríspida entre eles. Quando
saía para o trabalho, mamãe o acompanhava com os olhos, da varanda, até ele
dobrar a esquina da Rua Muçu. Então
davam um adeusinho. Como se fossem dois
namorados... Não se chamavam pelos nomes, ele era
“Bem” e ela era “Minha”.São lembranças fortes. Lembro-me de muitas coisas, pois, como tive o
privilégio de ser a primeira entre os seis irmãos a nascer (o que também tem
seus inconvenientes como rugas e vista cansada, talvez antes dos outros
irmãos), tive mais tempo de conviver com ele.
Ganhou dois presentes em datas muito
especiais: a primeira neta (Mônica) que nasceu na véspera do seu aniversário e
o primeiro neto (Adolpho) nascido no dia do aniversário de casamento (24 de
fevereiro). Por algumas pessoas tinha um carinho
especial:
GARIBALDI CELESTINO FRAGA
MEU PAI
ALZIR CARVALHAES FRAGA
A
Arizla já disse tudo. Ela foi a que mais conviveu com nossos pais e acredito
que também seja a de melhor memória. Eu gostaria muito de dizer que fui um bom
filho, que só dei alegria e motivos para o orgulho de meus pais, mas,
infelizmente, não estaria falando a verdade. Fui um garoto travesso, vivia
fazendo coisas erradas e era muito levado. Apesar disso, meus pais sempre me
trataram com extremo amor, carinho e compreensão. Não chegava a ser tão ruim
quanto o Pedrinho, filho do vizinho, o qual fazia maldade com animais e chegava
a matar gatos usando meios cruéis. Era apenas criança e fazia coisas erradas
próprias de crianças e depois que cresci acho que dei motivos de orgulho a
minha mãe e, principalmente, a meu pai.
A
lembrança mais antiga que tenho de papai é quando todos nós tomávamos um carro
e íamos à sapataria do Chico (Francesco Pugliese), primo do papai. Papai era
advogado dele e, ao invés de cobrar honorários, ocasionalmente renovava o estoque
de sapatos da família inteira. Era uma farra. Ao contrário da família do
Adolpho, na qual todos queriam ir junto à janela, nós queríamos todos ir no
banco da frente. Penso que Seu Adolpho deveria comprar um carro bem estreito e
comprido, com bancos de apenas dois lugares, enquanto o papai deveria optar por
um carro bem largo, de um banco só para que todos pudessem ir na frente.
Lembro-me
também de nossas idas à Fraternidade, todo mundo vestido impecavelmente de
branco e fazendo pose para as fotos segurando o coração. Em uma ocasião, a
Fraternidade comprou uma mesa de ping-pong e papai participava alegremente das
partidas, enquanto eu acho que era muito pequeno para isso. Por esta ocasião,
papai tinha decidido me dar pela primeira vez uma mesada, ou melhor, uma
semanada. Ele me prometeu dar uma moeda de dois cruzeiros todos os domingos.
Para ele isso podia não ser nada, mas para mim era muito importante e eu fui
cair na besteira de pedir a minha moeda justamente quando papai estava
participando de uma das partidas. Para que? Ele ficou nervoso e soltou logo um
“Não é possível! Você vem me pedir o dinheiro justo agora que eu estou jogando?
Minha, tome conta do seu filho para ele não ficar nos perturbando”. Esta é a
primeira bronca de que eu me lembro.
Papai
tinha pendurado em um prego na sala um quadro no qual constavam os retratos de
todos os que se formaram com ele na Faculdade de Direito. Uma vez eu quis ver
essas fotos de perto, mas era pequeno e, por isso, resolvi escalar a porta que
ficava perto do retrato. Não fiquei sabendo quem foi, mas alguém entrou
enquanto eu estava em cima da porta e eu despenquei no chão, quebrando o braço.
Levaram-me ao Dr Eiras (não o psiquiatra, mas o clínico geral que frequentava a
Fraternidade). Ele colocou o osso no lugar, mas não tinha gesso e encanou com
pedaços de papelão. Fui levado depois a um ortopedista, mas ele disse que o
imporoviso estava tão bem feito que ele preferiu não mexer.
Outra
travessura de que me lembro foi quando ainda morávamos na Rua Vitor Meireles.
Tínhamos uma vizinha que, aliás possuia um cachorrinho chamado Guará (mesmo
nome de um refrigerante de laranja da época) e nós costumávamos provocar a
vizinha cantando a música de propaganda do refrigerante com a letra modificada:
“Guará, Guará, Guará...
Bicho mais feio não há.”
Um
dia, ela tinha juntado com o ancinho as folhas de seu quintal e tacou fogo no
monte. Eu, como curioso e bom alpinista, subi no muro divisório para ver a
fogueira. Chegei perto e, de repente, despenquei de novo lá de cima e fui cair exatamente
dentro da fogueira! Coitada da vizinha. Levou um susto enorme, me tirou das
chamas e levou para deitar em uma cama, além de passar arnica no meu peito e
minhas costas. Ela era boazinha.
Na
Rua Vitor Meireles, papai costumava colocar cadeiras na calçada quando caía a
noite, principalmente nos dias mais quentes e ficavam sentados conversando e
vendo a gente brincar. A Arizla, mais moleca, jogava bola com os meninos e
brincava de “bandeira”, com os times tendo por objetivo pegar a “bandeira” do
time adversário e trazê-la para o nosso território. Quando alguém invadia o
território alheio, tinha que fugir dos inimigos, porque se um adversário
encostasse em você, você ficaria “colado” no lugar e só poderia se libertar se
algum colega do seu time chegasse até onde você estava de encostasse em você.
Lembro
ainda quando terminei o curso primário e frequentei um ano o curso de admissão
no Colégio Pardal Pinho, onde a diretora era a proprietária do curso e nós a
chamávamos de “Dona Pardaloca”. Eu até que não era dos piores alunos, mas
estava longe de ser um dos melhores. Mamãe não conseguia entender porque eu
sempre escrevia a palavra “guerra” omitindo a letra “u”. Era Gerra Cisplatina,
Gerra do Paraguai, etc. Talvez essa minha falha tenha influído quando me inscrevi
na prova de admissão em dois colégios: O Colégio Militar e o Colégio Pedro II.
Primeiro foi a prova do Colégio Militar. Fiz a prova e o papai foi saber o
resultado, recebendo a notícia de que eu tinha feito boas provas nas demais
matérias, mas tinha sido reprovado em História. Papai, sempre muito simpático,
amistoso e conversador, explicou que temia mesmo que isso acontecesse, porque
eu não gostava do professor de História do curso Pardal Pinho.
Como
não tinha passado, voltei ao curso para continuar estudando para a prova de
admissão ao Colégio Pedro II. Quando chegou o dia da aula de história, o
professor me chamou e disse que ele era major e professor de história no
Colégio Militar. Disse que tinha conversado com o meu pai e que meu pai tinha
dito que eu não gostava dele. Fiquei calado, completamente paralizado e sem
saber o que dizer. Eu só queria abrir um buraco no chão para desaparecer dali.
Felizmente fui aprovado no admissão do Pedro II.
A
entrada no colégio era às sete horas da manhã e nós morávamos no Alto da Boa
Vista. Ainda estava escuro quando a mamãe ia até à cama, tirava meus pés de sob
o cobertor, colocava as meias e só então me acordava. Eu me vestia, descia para
tomar café e, quando ouvia o barulho de que o bonde já estava descendo, descia
as escadas da casa correndo desabaladamente. Quando acontecia de chegar ao
portão e ver que este estava fechado à chave, eu subia uns lances de escada,
passava em cima da garagem e pulava a grade para cair lá em baixo na rua. Ainda
tinha que correr até ao armazem que havia no início da Rua Muçu, porque a
parada do bonde era lá. Descia até à Usina e pegava o bonde Tijuca, que me
levava até ao centro da cidade onde era o colégio. Quando essa correria me
fazia esquecer a gravata do uniforme, eu costumava fechar o agasalho até ao
pescoço para passar no portão do colégio sem ser barrado.
Quando
entrei para o Pedro II, tinha onze ou doze anos e meus pais me matricularam na
Aliança Francesa, mas eu detestava Francês. Mais tarde cheguei a estudar grego
por três anos para fugir do Francês. Eu tinha tal aversão ao Francês que
comecei a “matar as aulas” no curso enquanto ficava zanzando pela rua. Um dia
telefonaram lá da Aliança Francesa e perguntaram à mamãe o motivo de minha
ausência prolongada nas aulas. Eu devia ter levado uma surra, mas ficou só na
lição de moral e eu saí do curso.
Criei
outros problemas e preocupações para papai e mamãe. Uma vez eu fui ao cinema
com o Walter, irmão do Adolpho. Era um filme de faroeste e, quando o mocinho
beijou a mocinha, o Walter tirou do bolso uma gaita e tocou no cinema escuro.
Todo mundo riu e eu batí palmas e com os pés no chão. Vi que tinha quebrado
alguma coisa, fui tatear, descobri que era algo líquido e as minhas mãos
estavam brilhando no escuro. Mostrei ao Walter e saímos da sala de projeção,
onde me colocaram com as mãos no bebedor de água para lavá-las. Mas o caso é
que. Enquanto eu ia andando no corredor da sala escura, iam ficando pelo
caminho pegadas luminosas. O lanterninha achou que era fogo e tentou apagar com
o casaco. Perdeu um casaco nesse dia. Não sei quem tinha deixado a cápsula de
ácido fosfórico no chão, mas os espectadores ficaram furiosos, achando que eu
tinha iniciado um incêndio. Todo mundo gritava e até o Antonio, outro irmão do
Adolpho, estava na sessão separado de nós e gritava junto com a multidão:
“Lincha, lincha...”, mas, quando ele viu que era eu, corrigiu logo “Não lincha
não que é o Zico!”. Fui atendido no Pronto Socorro e tive as mãos enfaixadas
com gaze. Quando cheguei em casa, mamãe estava na varanda e eu brinquei com ela
“Mamãe, comprei luvas de box”. Ela calmamente fez um sinal mandando subir.
Em
outra ocasião, saindo do colégio eu atravessei a Av. Getúlio Vargas, mas não vi
um bonde que se aproximava e fui jogado no chão, paralelo ao trilho. A maior
sorte. Se tivesse caído enviezado, a roda teria me cortado em dois e se
estivesse com os braços ou as pernas abertas, teria um ou ambos os membros
deste lado amputados. Não sofri nada até que, no final do estribo, tinha alguma
peça de metal que me fez um corte na nádega.
De
novo no Pronto Socorro, onde recebi os pontos no corte. Uma semana depois,
foram retirados os pontos e o corte reabriu. Papai teve que me levar para um
hospital particular onde recebi anestesia geral e eles limparam o ferimento
para costurar de novo. Correu tudo bem, mas, quando eu acordei, não podia
levantar a cabeça porque me sentia terrivelmente mal e queria ficar na cama.
Mas o papai me explicou e insistiu que nós tínhamos que sair dali agora, porque
senão ele teria que pagar mais uma diária do hospital e ele não tinha dinheiro
para isso. Papai me pegou no colo (eu tinha doze anos) e me levou até um carro
e depois subiu as escadas do pédio até ao terceiro andar comigo no colo.
Todos
nós respeitávamos muito nossos pais. Podíamos chorar, mas nunca falar com eles
em tom desrespeitoso. Só nos referíamos a eles como “Senhor” e “Senhora”, não é
como agora em que pai e mãe são “você” ou até “Pai, tu vai pra casa?”. Se algum
dia eu vier a reencontrá-los, continuarei a tratá-los por “Senhor” e “Senhora”.
Quando
já estava na faculdade, nós tivemos um contato muitíssimo maior e aí é que eu
pude realmente conhecê-lo muito melhor. Ele era a pessoa mais simpática e bem
relacionada que eu já vi. Quando nós saíamos do escritório para ir ao forum, em
cada esquina ele encontrava um conhecido e parava para conversar. Conhecia todo
mundo! Sempre, nas sexta-feiras, ele ia almoçar com os irmãos Tranjan em um
restaurante árabe na Rua Senhor dos Passos. Algumas vezes eu fui junto. Eu
reclamava com ele porque cobrava barato demais, mas eles eram mais que apenas
clientes. Eram amigos. Eles eram proprietários de um andar inteiro de um edifício
da Av. Presidente Vargas. Esse andar estava alugado para uma repartição pública
federal e a burocracia fazia com que sempre o aluguel custasse a sair até que
nós entrávamos com a Ação de Despejo por falta de pagamento. Eles pediam para
purgar a mora (pagar o que era devido) mais as custas do processo e 10% de
honorários para o advogado dos Tranjans (nós). Um dia o papai chegou orgulhoso
me contando que tinha resolvido aquela situação e que agora não iria mais
ocorrer qualquer atraso no pagamento do aluguel. Eu fiquei muito P da vida.
“Papai, nós recebíamos todos os meses 10% (dez por cento) de aluguel de um
andar inteiro e agora, se não houver atraso, nós não ganharemos nada!”.
Infelizmente, foi isso mesmo que aconteceu.
Houve
uma vez em que o meu primo Sérgio (filho da Tia Mia) tinha sido condenado pelo
juiz em primeira instância em um processo criminal e estava preso. Papai fazia
a defesa, mas não conhecia direito penal. Quando chegou o dia do julgamento de
nossa apelação no Tribunal de Justiça, embora eu ainda não estivesse registrado
na OAB, eu podia assinar petições e participar de sessões desde que juntamente
com um advogado. Fui eu quem fez a defesa oral perante os desembargadores.
Falei sobre hermenêutica, técnica de interpretação da lei, as provas e também
apelei para o lado sentimental. Revelei aos desembargadores que o apelante era
meu primo e que eles tinham nas mãos a oportunidade de salvar a recuperação de
um jovem (Sérgio) e de manter o amor ao direito e a fé na justiça de outro
jovem (eu).
Quando
eu terminei, papai estava conversando com um ex-ministro do Supremo Tribunal
Federal (Evandro Lins e Silva) que tinha sido cassado pelos militares. Ele
tinha escutado a minha defesa e tinha elogiado muito a minha atuação para o
papai, vaticinando que eu viria a ser um advogado de sucesso. Papai estava
“explodindo de orgulho”. Quase chorava. Depois veio o resultado do julgamento.
Perdemos, droga!
Trabalhando
no escritório com papai eu percebi logo que não levava jeito para ser advogado.
Quando aparecia alguém trazendo um caso, normalmente essa pessoa já estava mais
informada sobre seus direitos do que nós, que não sabíamos nem do que se
tratava. Eu não sabia demonstrar segurança, enrolar e depois ir procurar nos
livros sobre o assunto. Não tinha a simpatia dele, não tinha como criar um
grande círculo de amigos e clientes e, principalmente, não tinha paciência para
aturar juízes, promotores e clientes. Uma vez, defendendo um caso de família em
que o juiz tinha estabelecido uma pensão provisória em valor maior do que o
nosso cliente ganhava, eu lhe disse para esperar chegar o dia da audiência e
que trouxesse todos os comprovantes para que o valor da pensão fosse diminuído.
Chegou o dia da audiência, eu entreguei ao juiz os comprovantes de renda
comprovando isso, mas o juiz disse mais ou menos: “Que nada! Os maridos sempre
arrumam um jeito de conseguir esses documentos fajutos para fingir que ganham
menos. Você vai ter que efetuar o pagamento agora de todos os atrasados ou eu
vou te dar voz de prisão e você vai direto para a cadeia”.
O
cliente ficou, claro, muito nervoso e eu também. Argumentava mas o juiz não
respondia com argumentos, mas só com suposições, deboche e ameaças. Até que
chegou uma hora em que eu não aguentei mais, levantei-me da cadeira, disse que
estava passando mal e sem esperar resposta retirei-me da sala e fui chorar no
corredor, de tão revoltado com a injustiça. Depois de algum tempo, voltei ao
local e um advogado me disse que ele mesmo tinha assumido a causa e tinha
negociado um acordo, mas que eu deveria voltar para assinar o acordo. O Juiz
estava furioso comigo, disse que aquilo era desacato e que ele só não tinha me
prendido porque o outro advogado tinha se oferecido para continuar a audiência.
Na verdade, eu acho que ele também ficou com medo das consequências, porque a
Ordem dos Advogados iria tomar a minha defesa quando eu contasse o motivo de
minha atitude.
Nunca
tive paciência para ficar conversando com clientes. Eu gostava era de escrever
petições e arrazoados analisando os processos. Briguei com vários clientes e,
quando o Tranjan resolveu vender os apartamentos que tinha alugados na Taquara,
um dos compradores era o casal de pais da Nicinha, minha atual mulher. Seu
Sebastião e Dona Eunice faziam quase uma viagem para vir de Jacarepaguá até ao
centro da cidade e, quando chegavam na porta do escritório e viam que só eu
estava lá para atender, diziam logo entre eles: “Dr Fraga não está. Vamos
embora porque quem está atendendo hoje é o nojento”. No dia da assinatura da
escritura eles levaram a filha de dezesseis anos de idade junto e eu fiquei
logo muito bonzinho e simpático. Isso foi no início do ano e quando este mesmo
ano chegou ao fim, nós já tínhamos voltado da lua de mel.
Como
queria fazer um concurso, resolvi entrar em um curso para não parar de estudar
e tive professores como Heleno Fragoso em direito penal e Aguiar Dias em
responsabilidade civil. Aguiar Dias era o papa neste assunto e seu livro de
dois volumes era a Bíblia em toda a América Latina. Um dia, ele estava
explicando um assunto e eu disse que não tinha entendido, porque me parecia que
contrariava outra parte. Ele explicou novamente, mas usando os mesmos
argumentos. Fui sincero e mostrei porque não achava a explicação satisfatória.
Ele prometeu rever o assunto e trazer a explicação na próxima aula. Na próxima
aula, ela foi logo dizendo que eu estava com a razão. Havia uma contradição entre
esta parte e outra que regulava de modo diferente. Disse que isso iria constar
da próxima edição de seu livro e fez questão de me dar uma declaração em que me
elogiava e vaticinava para mim um futuro brilhante na carreira. Quando eu
mostrei para o papai esse documento (que guardo até hoje), senti pela segunda
vez o seu sentimento de orgulho.
Houve
um ano em que papai resolveu realizar uma festa de fim de ano no escritório da
Rua da Quitanda. Compareceram o Nicolino e outros. Havia bebida e todos já estavam
um pouco altos. Quando homens se juntam, cada um quer contar mais vantagem que
os outros. Começaram a elogiar as qualidades de diversos afrodisíacos, como
amendoim, catuaba, barbatana de tubarão e houve até um que falou do pó retirado
do chifre de rinocerontes. Quando recomendaram ao papai uma dessas substâncias,
eu acho que ele não percebeu que eu estava escutando e declarou que: “Não, eu
não vou usar nada disso porque a minha mulher já “fechou a fábrica”. Eu nunca
fui infiel e não vai ser depois de velho que eu vou fazer isso”.
Por
isso eu tenho certeza de que ele foi fiel durante toda a vida. Acho que isso é
genético, transmitido de pai para filho. Escutaram essa, Nicinha e Mariana?
Ricardo diz que, enquanto foi casado, também respeitou a tradição.
Depois
que fui trabalhar com ele, enquanto cursava a faculdade, tivemos muito mais
contato que antes. Eu era muito fechado, mas ele gostava de conversar e há algumas
outras passagens sobre fatos que ele comentava comigo, mas acho que era
conversa reservada e não me sinto autorizado a relatar.
Quando
eu fiz o concurso e fui aprovado como juiz federal com apenas 26 anos, acho que
foi o terceiro e maior orgulho que ele teve e a realização de um sonho. Ele
sempre disse que queria que algum filho viesse a ser juiz ou embaixador. Minhas
irmãs foram todas professoras e meu irmão seguiu odontologia. Por isso, só
restava eu e fico muito feliz em saber que consegui realizar esse desejo dele.
Tomando
posse, tive que ir morar longe e perdi o contato com papai, mas ele me disse
que ficava furioso quando saía no Jornal Nacional alguma notícia sobre mim e
usavam o nome “Alzir Carvalhaes”. Ele queria que me chamassem “Alzir Fraga” ou
então pelo nome inteiro.
Por
tudo isso eu sei que, embora tenha sido levado e travesso na infância, dei a
meu pai vários momentos de felicidade e orgulho depois que cresci.
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